"A tecnologia não é destruidora de empregos", afirma Marcio Pochmann no primeiro seminário preparatório

“O futuro do trabalho não é mais a continuidade do passado; o que reprime o avanço é o medo de fazer diferente”, afirmou o economista e professor da Unicamp Marcio Pochmann, dando o tom de sua conferência sobre os desafios do mundo do trabalho, proferida no dia 15 de setembro, abrindo os seminários preparatórios do IX Congresso Interno da Fiocruz, a ser realizado em dezembro. Instância máxima de representação, o congresso define as grandes teses e diretrizes da instituição para os próximos quatro anos. 

Os seminários discutirão, ainda, até novembro, os temas: Desafios da Saúde e a Fiocruz do futuro; Desafios da Mudança climática e do ambiente e a Fiocruz do futuro; e Desafios da Ciência e da Inovação e a Fiocruz do futuro, com coordenação do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz Antonio Ivo de Carvalho (CEE-Fiocruz). “Há um desafio que orientará nossa ação em todas essas frentes, que é o desafio democrático, não só para a instituição como para toda a sociedade. Uma crise como a que vivemos aponta para várias possibilidades e saídas. Nenhuma está dada, mas todas requerem a visão democrática que também anima nosso processo”, disse a presidente da Fiocruz, Nísia Trindade Lima, que integrou a mesa de abertura do evento, ao lado do coordenador do CEE-Fiocruz, Carlos Gadelha, à frente da organização dos seminários preparatórios, o coordenador das atividades do Congresso Interno, Mário Moreira, e o chefe de Gabinete da Presidência, Juliano Lima, também integrante da comissão. 

A conferência de Marcio Pochmann teve como debatedoras a titular da Coordenação Geral de Gestão de Pessoas, Andréa da Luz Carvalho, e a pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz) e do CEE-Fiocruz Maria Helena Machado. Assista à íntegra do seminário no canal da VideoSaúde no YouTube

Ao citar o historiador norte-americano Benedict Anderson, Marcio Pochmann apontou uma “aceleração do tempo presente”, no qual assistimos a um “progressivo distanciamento do passado em relação ao futuro”, no qual “o progresso tecnológico revela a insuficiência do passado para orientar a ação humana”. 

O economista criticou a visão pessimista que anuncia uma “espécie de cancelamento do futuro do trabalho”, expressa, segundo ele, em versões regressivas da literatura ocidental sobre o tema, pelas quais o mundo do trabalho estaria marcado por poucos empregos e substituição dos empregos por robôs. “A tecnologia destruidora de empregos tem sido a temática constante desde o Fórum Econômico Mundial”, lembrou, contrapondo que países onde se observam grandes avanços em tecnologias com a robotização e a inteligência artificial, tais como Singapura, Coreia do Sul, Alemanha, EUA e China, não apresentaram “pelo menos até 2019, antes da pandemia, problemas graves de desemprego”. Pelo contrário, destacou, foram acompanhados por expansão de postos de trabalho e diminuição da taxa de desemprego. “Já os países de baixa inovação tecnológica seriam justamente aqueles que estariam registrando maior desemprego”, comparou. 

Em relação ao cenário brasileiro, segundo Pochmann, o país vive “um momento de estagnação no que diz respeito ao processo de incorporação tecnológica”. Para ilustrar a afirmação, o economista citou dados da Federação Internacional de Robôs, que registrou, em 2019, no Brasil, apenas dez robôs a cada 10 mil empregados, proporção que se manteve a mesma, de 2009 a 2019, inferior à da Argentina, com 19 robôs a cada 10 mil, e à do México, que teria 36. Isso não contribuiu, no entanto, para uma maior taxa de ocupações, sublinhou o economista: a taxa de desemprego no país, calculada pelo IBGE, “saltou de 6,8%, em dezembro de 2009, para 13,9%, em 2019”. 

Sobre esse diagnóstico brasileiro é que Pochmann conduziu sua fala, apontando, sobretudo, para o potencial de solução, “muitas vezes ausente dos debates atuais travados no Parlamento, na agenda governamental e também na dos analistas do nosso cotidiano”, disse ele. 

Antes de discutir as possibilidades para o mundo do trabalho no futuro, ele abordou três questões que, de acordo com sua avaliação, têm implicação direta na elaboração de políticas públicas: as questões demográfica, educacional e urbana. Em relação à questão demográfica, explicou que as projeções apontam para uma "numa fase de regressão absoluta da população brasileira” , a partir da década de 2040. ”Algo que a gente desconhecia, salvo na década de 1850, quando o Brasil encerrou o tráfico de escravos”. Com um crescimento populacional de apenas 4%, até 2100, disse, a população brasileira chegará ao fim deste século menor do que o atual. 

Ainda nesse quadro, conforme observou Pochmann, a pandemia acelerou uma situação desconhecida, que foi a expansão do número de mortos em relação ao número de nascidos em 2020. Pochmann abordou, também, a redução do número de jovens na população brasileira. Ele explicou que, hoje, o Brasil tem 50 milhões de jovens na faixa etária de 15 a 29 anos, e que, no final deste século (2100), a projeção é que esse contingente seja reduzido praticamente à metade (26,6 milhões).

Essa mudança demográfica tem implicações diretas no modo de vida, explicou Pochmann. “O envelhecimento vem acompanhado do isolamento social, da dificuldade de mobilidade. Isso abre uma perspectiva do ponto de vista ocupacional de grande potencial, pouco estudado e tratado nas políticas públicas”, observou.

Outro aspecto do país neste início do século, para o qual Pochmann chamou atenção, diz respeito à educação. Ele citou levantamento realizado entre 1997 e 2019, revelando que o Brasil fechou mais de 80 mil escolas, especialmente, no meio rural, destacando-se negativamente como um dos países que mais tem fechado escolas no mundo. A justificativa para essa ação, segundo ele, seria uma menor pressão demográfica em alguns municípios e regiões brasileiras, levando os responsáveis pela educação a direcionar os alunos a estudar longe de casa. “Seria essa opção a mais adequada? Não seria mais interessante, em um país com deficiências na qualidade educacional, avançar do ponto de vista da integração da escola com a comunidade, em um tempo integral do ponto de vista do ensino?”.

Ao lado dessas questões, na perspectiva do futuro do trabalho, Pochmann destacou a necessidade de reposicionamento do Brasil, tendo em vista um deslocamento do centro dinâmico do mundo do Ocidente para o Oriente, “polarizado pela Eurásia, em termos de investimento e recursos”, conforme analisa, considerando as alternativas que se colocam ao país. Ele alertou para a perda de importância do Brasil no cenário mundial, lembrando que o país, que, na década passada, situou-se entre as seis economias do mundo, passou a ocupar a 12ª posição. Ao mesmo tempo, considerou, no que diz respeito a novas fontes alternativas de expansão da economia, a possibilidade de o Brasil assumir posição de destaque, “a começar pela exploração do espaço sideral”, para lançamento de sondas e satélites, que viabilizam, por exemplo, a internet, “um dos principais “caminhos de acumulação e riqueza” por parte de grandes empresas. Ele citou aquelas que trabalham com informação, comunicação e gestão de dados, como as que constituem o sistema Gafan (sigla formada pelas iniciais das empresas Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft), que têm se mostrado muito mais rentáveis do que as automobilísticas e as petrolíferas. 

 “O país não tem seu GPS, como a União Europeia e outros países”, disse Pochmann, sublinhando a importância dos investimentos nessa área, como questão de soberania. “Não ter esse monitoramento a partir de satélite nos deixa vulneráveis a um sistema de comunicação vinculado a grandes empresas que não são brasileiras”, avaliou. Ele apontou também como necessária a reconfiguração do sistema de estatística e informações, evitando que os dados no Brasil continuem sendo hackeados e informações vazem para empresas não nacionais. 

Nesse cenário, o Brasil precisa definir suas grandes estratégias em relação à “aceleração do tempo presente”, aconselhou. “Propomos o Estado digital, que superaria o velho, e talvez anacrônico, Estado industrial”. Com a adoção da digitalização, ele considera que o país poderia organizar uma nova cultura de gestão pública, que permitiria economia de recursos. “Telemedicina, educação digital, redução de gastos de custeio, de deslocamento, estadia e transporte: facilitaria as atividades finalísticas”, citou.  

Ademais, a digitalização facilitaria muito o “acompanhamento da situação dos diferentes segmentos da sociedade, podendo viabilizar a reversão de um sistema tributário regressivo em que os mais pobres pagam”.

Outra proposição apresentada por Pochmann em relação ao futuro do mundo do trabalho seria a organização do território não mais sob o ponto de vista regional e sim considerando a diversidade dos biomas, pouco levada em conta no país, como perspectiva de investimento e meta de geração de empregos. Especialmente diante do novo regime climático, em que especialistas apontam “a possibilidade de continuidade de emergências climáticas e sanitárias”, o investimento nesse potencial se constituiria no “o passaporte para o desenvolvimento do século XXI”. E deu um exemplo: “A Amazônia realiza tarefa de oxigenação que recompõe o equivalente a 50% da emissão de gases tóxicos pela União Europeia. Esse é um ativo do qual jamais poderíamos abrir mão, como passaporte para o século 21”. 

Outra fonte de riqueza citada por Pochmann, e que também põe o Brasil em destaque, refere-se à expansão do desenvolvimento no fundo do mar, espaço pouco monitorado ainda – em apenas 5%. “O Brasil desenvolveu tecnologias para explorar águas profundas. Temos a nossa Petrobras, tão comprometida por um modo de gestão que a afasta dessa perspectiva de o país se tornar referência tecnológica e exploratória do potencial que representa o fundo do mar”.

Para Marcio Pochmann, “tudo isso é possível, está nas nossas mãos”, dependendo da mobilização de esforços, vinculando-se esses ativos a centros de pesquisa e produção de tecnologia avançada, reorganizando-se as expectativas do país, com olhos no pleno emprego, jornada de trabalho reduzida, educação permanente, organização dos sistemas de direitos sociais e trabalhistas. “São iniciativas necessárias, portadoras de um futuro em que o emprego possa ser viabilizado em torno da plena ocupação”, considerou, observando que o espaço aberto pelo seminário preparatório ao Congresso Interno da Fiocruz é um caminho para se alcançarem esses objetivos. “Um evento dessa natureza, ainda que internamente à Fiocruz, referência nacional e internacional, nos abre a perspectiva de ousar, sermos diferentes e, com isso, afastar o medo para construir um Brasil superior em que todos os que queiram trabalhar possam ter a sua oportunidade decente”, concluiu.

Em sua exposição como debatedora, a pesquisadora da Ensp/Fiocruz e do CEE Maria Helena Machado destacou a relevância do tema debatido na abertura dos seminários e citou a pesquisa Condições de trabalho dos profissionais de saúde no contexto da Covid-19 no Brasil, da qual foi coordenadora. O estudo, de acordo com a pesquisadora, mostrou a importância de se rever não só o conceito de saúde do trabalhador, como quem é o trabalhador da saúde. “Se é aquele que tem diploma, pelas 14 profissões reconhecidas no Conselho Nacional de Saúde, ou os que não fazem parte, como nós, dessas posições”.  

Nesse sentido, ela propôs uma ampliação: “Temos que pensar, por exemplo, em trabalhadores como os agentes comunitários e os agentes de endemias, que não se sentem acolhidos como setor e como trabalhadores da Saúde”, apontou, lembrando também o papel dos sepultadores como parte do setor saúde e a necessidade de políticas voltadas para esses trabalhadores, que precisam de proteção e cuidados. 

Maria Helena também destacou a importância da Fiocruz como instituição centenária e estratégica no país e a necessidade de se discutir “quem somos e o que fazemos no congresso interno da Fiocruz”, entendendo ciência e tecnologia como saúde, no sentido amplo da palavra. 

De acordo com a pesquisadora, “o futuro é agora”, para se repensar o ambiente de trabalho em saúde. “Não podemos continuar a ser produtores e geradores de doenças para o trabalhador da saúde, isso ficou claro na crise sanitária”, considerou. “Processos de trabalho pouco confortáveis, duros, extenuantes levaram os trabalhadores da saúde ao desgaste absoluto”, avaliou Maria Helena, chamando a atenção para o número de mortes dos trabalhadores da saúde durante a pandemia. “Estamos falando de mais de três mil e quinhentos trabalhadores da saúde, que foram a óbito; milhares foram contaminados com Covid, e isso precisa ser revisto não só pela sociedade, pelo sindicato, mas por nossa instituição”, conclamou.  

Concordando com Pochmann, Maria Helena defendeu a necessidade de redução da jornada de trabalho. “Precisamos rever a questão da legião de trabalhadores que vem crescendo de forma assustadora sem proteção social e sem direitos”, alertou.  

Para a pesquisadora, o setor saúde não pode continuar tratando seus trabalhadores como temporários, pois, “eles são permanentes, e a saúde é um bem público, um patrimônio da humanidade e seus trabalhadores, independentemente de que trabalho eles têm, precisam ter amparo institucional”.

A coordenadora geral de Gestão de Pessoas, Andréa da Luz Carvalho, reforçou, em sua exposição, as reflexões de Maria Helena Machado, quanto à necessidade de ampliação do conceito de trabalhador de saúde.  “Essa é uma sem dúvida uma oportunidade valiosa de sairmos um pouco daquilo que nos aliena no mundo do trabalho”, considerou. 
Ela destacou o papel da Fiocruz como espaço de debates, para direcionamento de suas ações. “É um espaço de participação e compromisso com o valor da democracia que defendemos. Atualmente, democracia, tem sido uma palavra que não imaginávamos que teríamos que defender cotidianamente”, alertou. “É preciso estarmos atentos, em todos os lugares que pudermos, para defender a democracia”.  

Andréa lembrou também a atuação da Fiocruz no enfrentamento da crise sanitária. “A Fiocruz entra no século 21 com sua tradição histórica, sua experiência no desenvolvimento de conhecimentos, vacinas, testes, diagnósticos, pesquisa, comunicação e informação”.

Ao falar sobre o futuro e o cenário laboral, ela trouxe ao debate a rotina do trabalho remoto, demonstrando preocupação. “Estamos mergulhados na experiência e sofrendo os efeitos de um longo tempo de separação entre presencial e o teletrabalho”, avaliou. 

“Estamos muito firmes no compromisso, mas muitas vezes cansados. É preciso parar um pouco para conversarmos sobre os limites para o corpo e para as nossas almas”, aconselhou, completando, no entanto, que ao lado das perdas, também houve “a oportunidade de nos voltarmos para o lar, para família, para as nossas necessidades de saúde, e para uma outra forma de viver o trabalho com mais flexibilidade”. 

Andrea acredita que um desafio a se enfrentar no presente, sobre o futuro do trabalho, será estabelecer uma discussão sobre a falsa oposição entre a divisão do trabalho presencial e o teletrabalho, “se um é mais econômico, flexível que o outro, se um traz ou não mais conforto que o outro”. Para ela, trata-se de uma falsa oposição. “Não traz luz ao que continua sendo o desafio do passado e do futuro, no presente: os processos de trabalho, que devem ser inclusivos, decentes, justos, e devem levar em consideração a diversidade”, explicou. 

E completou: “É sobre a coletividade do trabalho, a garantia para que ele seja um espaço de realização, de participação, de encontro entre a tradição e a inovação. É sobre o combate a todas as formas de violência, ao racismo e ao sexismo, a LGBTfobia, sobre o combate às desigualdades, sobre respeito e reconhecimento”.

Nesse caminho, a coordenadora da Cogepe também destacou a importância de uma agenda voltada à saúde mental dos trabalhadores, que, nesta pandemia, tornou-se ainda mais relevante. “Precisamos conectar o tema da saúde mental com os processos de trabalho, saber como acompanhar e que ferramentas criar para isso”, disse. 

Andréa convidou à reflexão sobre inclusão e defesa da diversidade e da equidade. “Defendemos a maioria e a maioria é a diversidade. Por isso, defendo radicalmente o conceito de equidade como o melhor para pensarmos políticas públicas. Temos que repensar nossas políticas de acordo com as diferenças que se apresentam em nossa sociedade”.

Matéria: Andréa Vilhena, Daiane Batista e Eliane Bardanachvil (CEE/Fiocruz)